Introdução
Foi dessa origem de pobreza que a população negra se desenvolveu ao longo
do século XX. Libertos, sem qualquer compensação pela escravidão, os negros
tiveram à disposição apenas subempregos, sendo vistos como perigosos, inadequados e como mão de obra dentro de um
sistema de trabalho livre e o país preferiu os brancos para o seu
desenvolvimento ao incentivar ondas migratória nas décadas de 40 e 50, quando
era dada preferência àqueles que atendessem “a necessidade de se preservar e
desenvolver na composição étnica da população, as características mais
convenientes da sua ascendência européia”.[3]
A educação, durante anos, permaneceu como privilégio das elites. À época da
escravidão a legislação proibia que os negros frequentassem escolas públicas[4]; até poucos anos antes do início do século XX
o único avanço foi autorizá-los a frequentar aulas em escolas públicas no
período noturno.[5] Até mesmo no que se refere à vida religiosa
havia discriminação: somente a partir de 1960, quando uma lei de caráter
nacional foi promulgada punindo atitudes de discriminação racial, é que as
congregações religiosas católicas atuantes no Brasil “tiraram de seus estatutos
e normas internas a proibição de negros e mestiços de entrarem para a vida
religiosa”.[6]
Ao contrário de sistemas de apartheid,
com separação de espaços físicos para
moradia, transporte, lazer e a proibição da miscigenação, como ocorreu em
muitos países, a discriminação brasileira se consolidou nas esferas econômica e
social. Com o passar dos anos, embora o Brasil tenha se caracterizado
mundialmente como uma nação sem preconceito, ela se desenvolveu de forma mais
sutil, o que não impedia, no entanto, determinadas manifestações racistas,
introduzidas nas piadas mais comuns, em expressões adotadas pela língua ou até
mesmo na proibição de uso de elevadores sociais em prédios ou a exigência de
“boa aparência” para acesso a emprego.
Em 1990, 65% da massa carcerária brasileira era constituída por negros.[7]
15 anos depois, chegando a 400 mil presos, o Ministério da Justiça indicava que
a maioria deles era de negros e pardos, entre 18 e 20 anos.[8]
Em 2002, consideradas as estatísticas da chamada linha da pobreza, 65,8% dos
brasileiros nessa condição ainda eram os negros. Em 2007 o Ministério do
Trabalho divulgou oficialmente que homens brancos tinham rendimentos médios
55,7% superiores aos dos negros, em todo o país. Em 2008, pesquisa que mapeou o
universo das 500 maiores empresas do país indicava que apenas 3,5% de negros
ocupavam cargos executivos.[9]
Os mais recentes dados, divulgados em junho de 2009, indicam que 60% dos trabalhadores negros brasileiros
têm rendimento de aproximadamente US$ 500, 59,5% estão empregados na construção
civil e 55,3% não possuem garantias trabalhistas (o que no Brasil representa
ter registro formal pelo empregador). O mais grave é que 24,6% dos negros com
mais de 15 anos não possuem instrução alguma e apenas 2,3% dos negros possuem
ensino superior completo.[10]
Ações afirmativas
Em 1988, quando o Brasil teve uma nova Constituição
promulgada, o racismo passou formalmente a ser considerado crime “inafiançável e imprescritível, sujeito
a pena de reclusão, nos termos da lei”.[11] Nos anos seguintes, seus desdobramentos,
vindos em forma de lei, levariam a indicar a pena de reclusão de um a três anos
e multa.[12]
Mas as chamadas “ações afirmativas” foram iniciadas muito antes, a partir
de iniciativas dos próprios negros. No
início do século XX (1931), a Frente Negra Brasileira teve, entre suas
propostas, a educação como meio de ascensão social, levando à inclusão de mais
de 400 negros na Força Pública de São Paulo. O Teatro Experimental do Negro,
criado na década de 40 do século passado, contribuiu com a formação de atores e
atrizes negros. Em 1978 surgiu o Movimento Negro Unificado, a partir de uma
manifestação de várias organizações negras nas escadarias do Teatro Municipal
de São Paulo em protesto contra a morte, sob tortura, de um trabalhador negro e
a discriminação de atletas negros expulsos de um clube na capital paulista.
Foi, entretanto, a partir dos anos 80 que as ações afirmativas se ampliaram
para a esfera pública, especialmente na área educacional e no mercado de
trabalho. Até então, a discriminação do negro na sociedade brasileira se
escondia adequadamente sob o conceito de democracia racial, que passou a ser considerado efetivamente
como um mito. Do ideal do Brasil mestiço começaram a surgir ações que
caminharam para o reconhecimento étnico-racial dos negros.
A luta
nos anos seguintes priorizou garantir o acesso à educação para começar a romper
a imensa distância até então existente entre brancos e negros na sociedade
brasileira. Uma das primeiras entidades a se organizarem foi a Educação e
Cidadania de Afro-descendentes e Carentes (EDUCAFRO), uma rede de cursinhos
pré-vestibulares comunitários, que funcionava em forma de voluntariado e
coordenada pelo Serviço Franciscano de Solidariedade. Foi também nesse período (1997) a criação de uma organização não
governamental, denominada Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio
Cultural (AFROBRAS) que reunia artistas, intelectuais e profissionais liberais
e teve como primeiro projeto concreto viabilizar duas mil bolsas de estudos no
ensino superior particular para afrodescendentes. A entidade teria papel
fundamental na criação, anos depois, da primeira instituição de ensino superior
voltada prioritariamente para afrodescendentes em toda a América Latina: a
Faculdade Zumbi dos Palmares.
Começaram, então, a se concretizar, a partir de
2001, várias iniciativas no que se
refere ao sistema de reserva de vagas, através de cotas para negros, na
educação superior pública. É também desse ano a reconhecida participação
brasileira na Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, realizada em
Durban, cuja declaração final, extremamente polêmica e subscrita pelo governo
brasileiro pela primeira vez admitiu formalmente a existência do racismo, em
seu artigo 2:
Reconhecemos que o racismo, a discriminação
racial, a xenofobia e as formas correlatas de intolerância são produzidas por
motivos de raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica, e que as vítimas
podem sofrer formas múltiplas ou agravadas de discriminação por outros motivos
correlatos, como o sexo, o idioma, a religião, opiniões políticas ou de outra
índole, origem social, situação econômica, nascimento ou outra condição.[13]
A
Conferência, que contou com a presença de 18 mil participantes, incluindo 16
chefes de Estado e 58 ministros das Relações Exteriores e mil representantes de
organizações não governamentais, ainda assim teve resultados instáveis, na
análise da Alta Comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Louise
Arbour, oito anos mais tarde: “os Estados ainda resistem em reconhecer a
existência do fenômeno do racismo. As leis nacionais e medidas para a sua
eliminação são inadequadas ou ineficazes, na maioria dos países”.[14]
No Brasil, ao mesmo tempo em que alguns ministérios passavam a garantir 20%
de suas contratações para afrodescendentes, a partir de 2002 o Ministério das
Relações Exteriores passou a conceder 20 bolsas de estudos federais a
afrodescendentes que se preparassem para o concurso de admissão ao Instituto
Rio Branco, encarregado da formação do corpo diplomático brasileiro.[15]
A partir de 2003
passou-se à exigência de adoção
da disciplina História e
Cultura Afro-Brasileira e da África para todos os estudantes do ensino médio. O
governo federal criou, ainda em 2003,
a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial,
que propiciou, como desdobramento, a criação de superintendências e
coordenações de promoção da igualdade racial em vários estados e municípios
brasileiros. Várias cidades passaram a incluir cotas para negros em concursos
para seleção de cargos públicos. Uma nova consciência de raça começava a
crescer com a adoção opcional, em muitas cidades, do Dia da Consciência Negra,
comemorado em 20 de novembro.[16]
Um novo programa de acesso a instituições particulares de educação superior,
criado pelo governo federal em 2004, o Universidade para Todos (PROUNI) passou
a garantir 30% de suas vagas anuais para negros e pardos. Em quatro anos de
funcionamento, cerca de 197 mil universitários afrodescendentes foram
incorporados ao ensino superior brasileiro e, atualmente, cerca de 45% das
vagas oferecidas pelo PROUNI são utilizadas anualmente por negros e pardos.
Tais números representaram um aumento da participação dos negros para 29,5% na
educação superior particular e para 38,2% na educação superior pública, em
cursos de graduação.[17]
Calcula-se que 7.850 vagas foram reservadas para estudantes negros/as, a cada
ano, nas universidades públicas, por diferentes programas de ação afirmativa, o
que é considerado um número ainda restrito, se comparado aos dados do Censo
Educacional de 2005, que aponta 331 mil matrículas em universidades públicas
brasileiras.[18]
A
implementação de ações afirmativas e, especialmente, a política do
estabelecimento de cotas veio acompanhada de muita polêmica no Brasil,
inclusive nos meios acadêmicos e universitários. Um dos principais argumentos
utilizados era a sua inconstitucionalidade, levando juristas a repetirem
debates já ocorridos em outras partes do mundo, inclusive nos EUA, sobre se
ações afirmativas caracterizariam a garantia de um direito ou o estabelecimento
de um privilégio.
O caso
brasileiro, considerando-se a Constituição de 1988, teve diferentes
interpretações. Os que defendem as ações afirmativas fundamentaram-se no
entendimento de que, “para além da igualdade formal, a Magna Carta estabeleceu
no seu texto a possibilidade do tratamento desigual para pessoas ou segmentos
historicamente prejudicados nos exercícios de seus direitos fundamentais”.[19]
Até porque a própria Constituição estabeleceu a proteção do mercado do trabalho
para a mulher através de incentivos específicos e a reserva de percentual de
empregos públicos para pessoas portadoras de deficiências.[20]
Anteriormente, a legislação eleitoral brasileira já havia estabelecido uma cota
mínima de 30% de mulheres para as candidaturas de todos os partidos políticos.
Entre os que criticam a sua adoção, um dos argumentos é que as ações
afirmativas desconsideram a ideia do mérito individual, favorecendo um grupo em
detrimento de outro, o que também contribuiria para a inferiorização do grupo
supostamente beneficiado, incapaz de vencer por si mesmo.
Os
principais opositores insistem que a questão das cotas não pode se restringir à
questão racial, mas deve se ampliar para um problema de caráter
socioeconômico, que abrangeria uma problemática ainda maior no Brasil. Seu
principal argumento é a defesa em torno de políticas universalistas que
gerassem maiores oportunidades e qualidade na educação básica oferecida e na
expansão do ensino superior. Por trás desse argumento se fixa a lógica de que,
ao se beneficiar a população mais pobre, necessariamente estariam sendo
beneficiados também os negros que seriam o maior percentual desse universo.
Lideranças negras rebatem o argumento indicando que ele reforça ainda mais a
vinculação entre negro e pobreza.
Neste contexto, o
estigma atua reforçando uma ciranda perversa na qual a existência da pobreza
surge como parte constitutiva e natural de nossa realidade, especialmente
quando sua cor é negra [...] pobreza se enfrenta com um conjunto amplo de
políticas de cunho universalista, tendo como pano de fundo o crescimento
econômico e a distribuição mais equânime da riqueza. Racismo, preconceito e
discriminação devem ser enfrentados com outro conjunto de políticas e ações.
Conjunto esse que, infelizmente, ainda está por se consolidar.[21]
Desde
2005 tramita no Congresso Nacional a proposta de um Estatuto da Igualdade
Racial, que incentiva a adoção de políticas públicas de ações afirmativas,
reforçando a necessidade de instrumentos de inclusão, de forma a promover a
igualdade racial. Em setembro de 2009, a Câmara dos Deputados aprovou o Estatuto
que não contempla os pontos mais polêmicos da proposta original. Na sequência
da tramitação o texto segue para ser apreciado e aprovado pelo Senado.
Outra iniciativa do governo brasileiro foi o encaminhamento ao
Congresso Nacional, em 2008, de proposta para a criação da Universidade Federal da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), instituição pública que
deverá atender as demandas dos integrantes da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa. A ser instalada em Redenção, Ceará/Brasil, cidade que pioneiramente
aboliu a escravatura em 1883,
a nova Universidade deverá atender cinco mil alunos,
sendo metade deles originários de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. A outra metade será de alunos
brasileiros. Segundo Paulo Speller, que preside a comissão de implantação da UNILAB, o projeto prevê o desenvolvimento de ações conjuntas com outras
instituições sociais e comunitárias que se destacam na integração étnico-racial
e na cooperação com países africanos e asiáticos, entre as quais a Faculdade
Zumbi dos Palmares ocupa lugar de destaque.[22]
A Igreja Metodista – compromisso com
os excluídos[23]
A
questão do racismo só foi merecer das igrejas evangélicas espaço específico de
atuação e preocupação no Brasil também a partir dos anos 80.
A
Igreja Metodista brasileira, entretanto, sempre apresentou como uma de suas
marcas de fé o comprometimento com a justiça social, a defesa e promoção social
dos mais fracos e oprimidos vistos como vítimas da estrutura socioeconômica.
Também prega a tolerância e respeito às diferentes culturas e religiões.
O Credo
Social Metodista, já com mais de cem anos, de maneira mais ampla estabelece que
“a Igreja Metodista não só deplora os problemas sociais que aniquilam as
comunidades e os valores humanos, mas orienta a seus membros [...] a propugnar
por mudanças estruturais da sociedade que permitam a desmarginalização social
dos indivíduos, grupos e das populações”.
Em 1982, os metodistas aprovaram um documento,
referencial para seu posicionamento, denominado “Plano para a vida e missão”.
Nele, ao expor a herança wesleyana, o documento faz menção ao compromisso
permanente metodista com os aspectos sociais que envolvem o ser humano.
De modo especial, os metodistas se preocupam
com a situação de penúria e miséria dos pobres e, inspirados nas primeiras
manifestações de John Wesley, combatem tenazmente os problemas sociais que
oprimem os povos e as sociedades onde Deus os tem colocado, denunciando as
causas sociais, políticas, econômicas e morais que determinam a miséria e a
exploração e anunciando a libertação que o Evangelho de Jesus Cristo oferece às
vítimas de opressão.
Reforçando
sua preocupação social e de inclusão, o documento define como missão da Igreja
atuar “em qualquer situação onde a opressão e morte negaram a realidade da vida
com a qual Deus se compromete desde o começo do mundo; as estruturas sociais
que se tornaram obsoletas e desumanizantes, opressoras e injustas”. Nesse
contexto surge, então, uma menção específica ao negro, indicando como meios de
atuação, entre outras, “criar estruturas e instrumentos que visem ao
desenvolvimento da consciência nacional para promoção dos discriminados e
marginalizados: o negro, o índio, a mulher, o idoso, o menor, deficientes,
aposentados e outros”.[24]
Também aprovado em 1982, o plano
“Diretrizes para a educação metodista”, deteve-se no tema, ao indicar que o
racismo é um mal social que merece atenção de toda ação educativa: “Toda a ação
educativa da Igreja deverá proporcionar aos participantes condições para que se
libertem das injustiças e males sociais que se manifestem na organização da
sociedade, tais como: [...] racismo,
usurpação dos direitos do índio”.[25]
Em 1985
foi criada na Igreja Metodista a Comissão Nacional de Combate ao Racismo, a
partir do I Encontro Nacional Negro Metodista, realizado no Rio de Janeiro, com
apoio financeiro da Junta de Mulheres Metodistas dos Estados Unidos e do Programa
de Combate ao Racismo do Conselho Mundial de Igrejas e a participação de 42
metodistas negros vindos de várias partes do país.[26]
Seu objetivo era identificar as posturas racistas dentro da própria Igreja,
como na hinologia e literatura adotadas na escola dominical, e promover
lideranças para atuar em programas de inclusão e diversidade. Da Comissão
Nacional de Combate ao Racismo resultaram as versões regionais, existindo
atualmente pastorais em várias regiões e, na área de São Paulo, desde 2005, foi
instituído o Ministério de Ações Afirmativas Afrodescendentes, que tem se
voltado para a sensibilização das igrejas, não somente em relação ao racismo,
preconceitos e discriminação raciais, mas também para o resgate do valor
cultural afro-brasileiro, a autoestima étnico-racial e a releitura bíblica a
partir da presença africana. Portanto
tem sido de caráter mais educativo.
Esses
movimentos também geraram grupos atuantes fora do território metodista na
década de 80 do século passado, sob as lideranças negras evangélicas e
católicas, facilitando o surgimento de uma movimentação ecumênica em torno do
tema. No Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto Superior do Estudo das
Religiões (ISER), 16 afrodescendentes metodistas, batistas e católicos
organizam um grupo de trabalho objetivando produzir uma Teologia Negra de
Libertação, a partir do trabalho dos líderes populares.[27]
Em 1986 foi criada a Comissão Ecumênica Nacional de
Combate ao Racismo (CENACORA), reunindo representantes das igrejas que então
compunham o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil - Metodista,
Episcopal, Evangélica de Confissão Luterana, Presbiteriana Unida, Católica - e
unindo-se, ainda, ao órgão recém-criado, a Igreja Católica Ortodoxa Siriana e a
Igreja Evangélica Luterana.
No Rio
Grande do Sul, a ONG Centro Ecumênico de Cultura Negra começou em 1987, nas
dependências da Igreja Metodista de Porto Alegre. Atualmente tem como uma de
suas ações a viabilização de cotas raciais, por meio do convênio com o
Instituto Porto Alegre da Igreja Metodista (IPA), que “possibilita bolsa
integral de estudo para o acesso de pessoas negras à Universidade”.[28]
Também,
foram criados Fóruns Permanentes de Mulheres Negras Cristãs no Rio de Janeiro e
São Paulo, em 2000, por iniciativa da CENACORA, tendo na liderança mulheres
negras metodistas. No Rio de Janeiro estas mulheres têm participado de
movimentos políticos e busca de direitos de mulheres contra o sexismo e o
racismo.
A mais recente manifestação oficial metodista sobre o
tema aconteceu em 2005, em uma consulta nacional. Entre suas principais
conclusões, encaminhadas aos órgãos diretivos nacionais destaca-se
que a Igreja Metodista assuma uma postura
pública contra o racismo e a favor das ações afirmativas e inclusivas e em
relação aos afro-descendentes e outros grupos minoritários, que a questão raça
e etnia sejam abordadas em todos os encontros e eventos promovidos pelas
igrejas e instituições metodistas, de maneira a promoverem desmistificação da
igualdade racial e a explicitação das manifestações de racismo, que seja criado
um fórum para acolher e tratar os casos de racismo na Igreja, que se inclua no
Código de Ética da Igreja estrutura de justiça eclesiástica que garanta sanções
em casos de posturas e atitudes racistas.[29]
Segundo
o bispo Luiz Vergílio,[30]
“o 16º Concílio Geral da Igreja Metodista, realizado em 1997, aprovou, por
proposta da Comissão Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, uma
política de cotas para negros e negras em nossas escolas, como resgate de uma
dívida histórica e a favor da formação de lideranças sociais.” No entanto, até
hoje a proposta conciliar não vigora formalmente nas instituições metodistas. Foi
nesse mesmo Concílio que o bispo Adriel de Souza Maia, então presidente do
Colégio Episcopal, também distinguiu a questão dos negros de forma clara, na
mensagem distribuída à nação brasileira ao final do encontro:
Não é possível
transpor o término destes cinco séculos sem nos darmos conta das dívidas
sociais que contraímos para com os povos que aqui viviam. Eles foram dizimados
ou reduzidos em número e cultura a meros espectros [...] temos dívidas para com aqueles que foram
trazidos para esta terra na humilhante condição de escravos. Há que
confessar este nosso débito–assumido por toda a sociedade, inclusive as
igrejas.[31]
Em
2006, encontros regionais caminharam na mesma direção, aprovando outros
documentos que expressam reivindicações e anseios de grupos de pessoas negras
metodistas em relação à inclusão cultural e valorização da negritude no meio
metodista, a inclusão da temática racial dentro da programação das igrejas e
dos currículos educacionais das instituições metodistas; programas de inclusão
de negros na educação; mapeamento dos negros metodistas; elaboração de uma
Carta Pastoral que aponte as diretrizes da Igreja Metodista em relação a
questão racial. O Colégio Episcopal assumiu a prioridade de elaborar essa
manifestação em forma de Carta Pastoral.
Lideranças
negras que hoje atuam na própria Igreja entendem, entretanto, que a temática da
desigualdade sócio racial, o racismo e seus desdobramentos – preconceito de cor
e discriminação racial – ainda estão em processo de assimilação dentro da
Igreja Metodista no Brasil. Entretanto,
de maneira pessoal, ao longo dos últimos anos, bispos metodistas, inclusive
afrodescendentes, têm se manifestado sobre o tema, como o bispo Luiz Vergílio,
escrevendo sobre a questão das ações afirmativas:
Mais do que a triste herança de sermos os
primeiros sem-terra e sem-teto, com o advento da abolição, é a dor de sabermos
que o silêncio e a negação desta realidade têm sido instrumento ideológico de
perpetuação de nosso lugar social, e, em alguns, casos, da negação de nossa negritude.
Por isso, sob discurso de igualdade constitucional, as iniciativas
compensatórias – que minimamente oferecem possibilidades de resgate de
condições históricas determinantes da situação de empobrecimento e exclusão
social da imensa maioria da população negra – sempre encontram resistência da
comunidade branca; aliada a uma minoria negra sem consciência deste processo
histórico de cooptação e negação.[32]
Em maio de 2008 as chamadas igrejas evangélicas
históricas, entre as quais a Metodista, receberam do Movimento Negro brasileiro
– que reúne vários movimentos distintos entre si – um documento indicando que
elas devem pedir perdão ao povo negro por sua participação e cumplicidade na
escravidão, assim como seu silêncio diante do racismo.[33]
A UNIMEP – postura e contribuição a
favor da inclusão
Também
nas escolas metodistas de educação superior do Brasil a exclusão do negro foi
algo comum, como ocorreu no restante da sociedade, até praticamente o final do
século XX. Programas específicos de inclusão não foram identificados ou
implementados, apesar da ênfase dada ao comprometimento religioso de
valorização e luta pelas minorias.
Foi
na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), então a maior instituição
universitária metodista brasileira e a primeira universidade metodista criada
na América Latina, que, em 1998,
a AFROBRAS foi primeiramente buscar apoio no sentido de
obter bolsas de estudos específicas para beneficiar negros que fossem aprovados
no exame de ingresso aos cursos da instituição. A UNIMEP já era reconhecida
como uma das instituições no país que mais se identificara, nas décadas
anteriores, por sua luta contra a ditadura militar, de apoio a organizações
populares, de posicionamentos políticos de solidariedade internacional, de
defesa dos marginalizados, como favelados, prostitutas, mulheres, indígenas,
idosos e negros. Criada em 1975, sua compreensão de educação sempre envolveu
uma profunda relação e comprometimento com a comunidade, tratando de forma
indissociável o ensino, a pesquisa e a extensão, funções básicas da
Universidade. Apesar desse esforço, o percentual de negros entre seus
estudantes e professores era insignificante, à semelhança do que ocorria em
todo o universo acadêmico.
É nesse contexto que deve ser entendida a importância do
convênio assinado em 1999, entre a UNIMEP e a AFROBRAS, o primeiro em todo o
Brasil que garantia bolsas de estudo específicas para negros. Eram 20 bolsas,
que seriam distribuídas a alunos que fossem previamente aprovados nos exames e
indicados a critério da própria ONG. Era o primeiro sinal de que o projeto
“2.000 para 2.000” ,
que a AFROBRAS havia lançado, pretendendo garantir a presença de mais dois mil
negros nas universidades do estado de São Paulo no ano 2000, poderia dar certo.
Anos mais tarde, o presidente da organização, José Vicente, afirmaria seu
reconhecimento à iniciativa do reitor Almir de Souza Maia, à frente da UNIMEP:
A UNIMEP foi pioneira e isso é que a
caracteriza. Em seguida, outras universidades tiveram a mesma atitude, também
concedendo bolsas de estudo. Depois que as coisas estão acontecendo, é fácil. A
grandeza está quando não existe nada, quando se precisa ser pioneiro. Só mesmo
os que creem realmente é que são capazes de assumir tal posição.[34]
O
raciocínio e o reconhecimento de José Vicente têm fundamentos. Em apenas 10
anos, o panorama de inserção dos afrodescendentes no ensino superior brasileiro
seria amplamente alterado. Dados do ENAD/2000, exame obrigatório realizado no
Brasil pelos formandos de cursos superiores, mostram a presença de apenas 1,6%
de novos administradores negros, 2% de advogados, 1,1% de veterinários, 0,7% de
dentistas, 1% de médicos, 2,9% de jornalistas e 1,6% de psicólogos. Os
percentuais levavam à indicação de que, naquele período, pelo menos 80% dos
universitários brasileiros eram brancos.[35]
Até o
ano 2000 as estatísticas sequer existiam nas universidades para registrar
oficialmente a presença dos negros. O I Censo Étnico-Racial realizado na
Universidade de São Paulo (USP), maior instituição pública brasileira, ocorreu
apenas em 2000, e indicava que 8,3% de seus 34 mil estudantes de graduação eram
negros ou pardos, para um percentual de 27,4% de negros em todo o Estado. No
mesmo ano, pesquisa denominada “A cor da Bahia”, também mapeando o percentual
de negros na Universidade Federal daquele estado, indicou a presença de 42,6%
de estudantes para um percentual de 74,36% na constituição de sua população.[36]
Se considerado o número de professores, a situação ganha, inclusive, outro tipo
de preocupação, analisada em vários artigos: os negros praticamente inexistem
no universo acadêmico como docentes. Em 2002, quando a Universidade de Brasília
possuía 1400 professores, 14 eram negros, mas apenas 4 se reconheciam como tal,
mesmo sendo Brasília a terceira região metropolitana do país de percentual
negro mais alto na composição de sua população. Na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP, de 504 professores, apenas 1 era negro e esse era
africano. Dados que levaram José Jorge de Carvalho, proponente do estabelecimento
de cotas na Universidade de Brasília, a lembrar que
a principal faculdade de referência, que
escreve continuamente livros sobre a nação, sobre a sociedade brasileira, sobre
o pensamento social brasileiro, é branca! É uma faculdade branca, esta é a
leitura que os brancos estão fazendo da história do Brasil, dos bandeirantes,
da cordialidade brasileira, da mestiçagem brasileira, da modernização, das
características da literatura brasileira. É um grupo de 504 brancos que
descrevem o Brasil.[37]
Nessa
mesma manifestação Carvalho sinaliza a iniciativa da UNIMEP, lembrando que
tanto ela quanto a Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), “duas grande
universidades particulares do Brasil”, já haviam reservado vagas e bolsas
anuais para negros.[38]
Em 2003 a
UNIMEP também concluiu seu Censo
Étnico-Racial, o primeiro realizado em uma instituição privada de educação
superior do país, envolvendo professores, funcionários e estudantes.[9]
Entretanto,
o efeito do convênio firmado entre a UNIMEP e a AFROBRAS ia além das 20 vagas
garantidas na instituição. Dentro da própria Universidade, o debate sobre o
racismo e a inclusão dos afrodescendentes cresceu, com a promoção de simpósios,
a realização de uma pesquisa interna sobre a sua presença na instituição e o
apoio a movimentos organizados na cidade e na região. Segundo José Vicente,
[...] o Prof. Almir Maia, enquanto reitor,
deu uma contribuição fundamental ao movimento negro, num momento em que a
polêmica sobre as ações afirmativas ganhava muita força em todo o país. Precisávamos
dele acima de tudo como formador de opinião. E a UNIMEP foi, através de sua
pessoa e de sua assessoria, a parceira moral e institucional de todos os nossos
trabalhos. Ela seria a sustentação de formadores de opinião, ajudando a vencer
as muitas resistências ao trabalho inicial da AFROBRAS. Sempre que precisamos
que o Prof. Almir Maia se manifestasse, nos mais variados veículos de
comunicação e eventos, ele nunca deixou de fazê-lo.[40]
Em 1986 uma
nova equipe assumiu a reitoria da Universidade Metodista de Piracicaba. O novo
reitor, Almir de Souza Maia, vindo de uma tradicional família metodista, de
poucos recursos, estudou com bolsas e sempre reconheceu a importância da Igreja
Metodista na sua formação. A preocupação com uma política de bolsas e apoio a estudantes
pobres era uma das marcas da sua administração, inclusive no tempo quando ainda
era vice-reitor, durante o qual a UNIMEP já era caracterizada por suas posições
inclusivas. Sua influência como formador de opinião pôde contribuir eficazmente
aos propósitos do movimento negro, porque, naquela época, Maia tinha um assento
no Conselho Nacional de Educação, o órgão mais importante do país, com poderes
para definir a educação brasileira. Além disso, ele era integrante de um órgão
de ação comunitária do governo federal (Conselho Consultivo da Comunidade
Solidária) e órgãos de reconhecida liderança metodista, também participando de
Diretorias e Presidência de instituições metodista e evangélicas: o Conselho
Geral das Instituições Metodistas de Educação (COGEIME), Asociación Latinoamericana de
Instituciones Metodistas de Educación (ALAIME), International Association of Methodist Schools, Colleges and
Universities (IAMSCU), Associação Evangélica Brasileira de Instituições de
Educação (ABIEE).
base da futura universidade
para afrodescendentes
Quando a AFROBRAS foi criada, o sonho da existência no
Brasil de uma instituição universitária que atendesse preferencialmente a
afrodescendentes não existia. Mas, na medida em que o tempo foi passando e se
consolidando a importância de ampliação das possibilidades de acesso à educação
superior, a ONG começou a trabalhar nesse sentido, servindo-se inclusive de
suas relações, amadurecidas nos anos anteriores, com outras instituições
educacionais do país e com o próprio governo. Foi nesse momento que suas relações com a UNIMEP acabaram
por ser fundamentais. Quando José Vicente entendeu que as mediações, as
parcerias, os contatos já haviam se ampliado o suficiente para se tentar criar
uma instituição própria de ensino, foi junto à UNIMEP que a AFROBRAS buscou
auxílio para formulação do projeto de uma instituição de educação superior.
Seu
objetivo era criar essa instituição de ensino superior voltada prioritariamente
para afrodescendentes em São
Paulo , a maior cidade da América do Sul, garantindo uma
mensalidade inferior à média cobrada por outras instituições particulares, de
forma a atender preferencialmente jovens negros carentes e trabalhadores.
No Brasil, a criação de instituições de ensino
superior exige a autorização prévia do Ministério da Educação, com a
apresentação de projeto completado com a especificação dos regulamentos,
regimento interno, política acadêmica, dados econômicos e financeiros,
instalações e infraestrutura, corpo docente, etc. Nesse contexto a participação
da UNIMEP era essencial e o reitor da Universidade assegurou à AFROBRAS o
trabalho de consultoria especializada, tanto na academia como na administração,
proporcionando-lhe a estrutura e experiência acumuladas ao longo de 25 anos de
existência da Universidade Metodista. Também a UMESP deu sua contribuição. Maia
forneceu, ainda, contatos no exterior para que a AFROBRAS fosse buscar
parcerias e apoio à sua iniciativa, incluindo nas instituições Metodistas nos
Estados Unidos da América.
“Foram seis
meses de trabalho direto, com idas e vindas de São Paulo a Piracicaba. Do
debate com vários professores e a assessoria da UNIMEP foi possível se montar o
projeto da UNIPALMARES encaminhado ao Ministério da Educação, que nos foi
entregue, inclusive, em mãos, trazido pelo motorista da reitoria”, relembra
José Vicente.[41]
Com a
receptividade de órgãos do governo brasileiro, em poucos meses de tramitação o
processo foi aprovado pelo Ministério da Educação e autorizado o funcionamento
da “Faculdade Zumbi dos Palmares”. Seu primeiro curso, o de Administração de
Empresas, começou a ser oferecido em 2003. Começava a se desenhar aquela que
seria a primeira instituição de ensino superior na América Latina voltada
prioritariamente para afrodescendentes.
O crescimento da UNIPALMARES aconteceu rapidamente. Nos
anos seguintes foram sendo criados os cursos de Administração, Direito,
Pedagogia, Publicidade e Propaganda, Tecnologia de Transportes. Parcerias foram
firmadas para viabilizar seu funcionamento. 50% das vagas eram reservadas para
afrodescendentes e era dada preferência a professores negros À sua grade
curricular foram agregadas disciplinas que compensassem a defasagem dos alunos,
a maioria vinda de escolas públicas e com eventuais deficiências de formação no
ensino básico, foi criado o Laboratório de Reforço Extra-curricular, além de
oferecer um Centro de Apoio Pessoal, com psicólogo, assistente social e
orientador educacional disponíveis para atendimento aos novos universitários.
Nesses
primeiros anos da instituição foi estratégico o apoio e contatos da UNIMEP.
Recebendo delegações de educadores de Universidades Metodistas Americanas e
líderes negros Metodistas com certa freqüência nos seus campi, a UNIMEP usou
cada oportunidade para incluir contatos com a nascente UNIPALMARES. O
conhecimento da experiência de universidades metodistas americanas que puderam
apoiar a inclusão de negros em seus quadros docentes também serviu como
estímulo para os sonhos da crescente AFROBRAS.
Afrodescendente
de origem humilde, filho de trabalhadores rurais, José Vicente era policial
antes que pudesse terminar o curso de Direito. Considerando a proposta da
UNIMEP e a sua qualidade acadêmica, ele decidiu cursar nela o do Mestrado e
Doutorado em Educação, na busca de formação acadêmica.
Muitas e
muitas vezes ele tem insistido:
Não somos racistas! Essa foi a expressão que
mais tive que repetir nos últimos anos para justificar e defender junto a
pessoas e instituições a oportunidade e a necessidade da criação e da
consolidação de uma instituição de ensino com o caráter e os fundamentos da
Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares – fundeada no acesso universal, na
excelência do ensino, na promoção da inclusão ao mercado do trabalho, na
cultura da tolerância, do diálogo interracial, na valorização da diversidade
racial, no resgate da auto-estima e na elevação do protagonismo dos jovens
negros. Entendíamos que fazer essa universidade era o pouco que nos restava
como forma de sinalizar um novo tempo, um novo caminho, uma nova esperança e
uma nova possibilidade frente ao notório e terrível quadro de exclusão que
inexoravelmente vitima o negro na sociedade brasileira.[42]
O reconhecimento e os resultados da
UNIPALMARES
O
trabalho desenvolvido pela UNIMEP foi sempre reconhecido publicamente pela
AFROBRAS ao longo de todos esses anos. No próprio site da UNIPALMARES, a
participação da UNIMEP tem sido destacada seguidas vezes:
[...] desenvolvida ao longo de quatro anos,
primeiramente em parceria com o Núcleo de Políticas e Estratégicas da
Universidade de São Paulo e Universidade Metodista de Piracicaba, a
Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares nasceu como um dos vários projetos
desenvolvidos pela AFROBRAS com a finalidade de valorizar, qualificar, capacitar,
formar, informar e dar visibilidade ao negro paulista e brasileiro.[43]
Nas
cerimônias anuais das AFROBRAS, que reunem a elite intelectual negra do país,
homenageando aqueles que se destacam nas artes, na ciência e na educação, desde
então tem sido incluído entre os homenageados o ex-reitor Almir de Souza Maia,
distinguido com as mais altas honrarias e troféus concedidos pela ONG, pelos
serviços a ela prestados. Seus companheiros de homenagem têm sido, via de
regra, ninguém menos que ex-presidentes da república, ministros, governadores,
empresários, artistas, os mais altos representantes educacionais do país. A
consulesa geral dos EUA no Brasil, Carmen Martinez foi uma das pessoas que
recebeu o prêmio Zumbi dos Palmares em reconhecimento ao esforço do povo
norte-americano para eliminar todas as formas de discriminação racial e étnica
em seu país, numa mesma cerimônia em que ele foi concedido a Almir de Souza
Maia, ao então governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin e ao
embaixador da África do Sul no Brasil, Mbulello Rakwena.[44]
Em
2008, quando a primeira turma de Administração da UNIPALMARES realizou sua
cerimônia de formatura, com a presença do presidente da República Luiz
Lula da Silva e do ministro da Educação Fernando Haddad, o ex-reitor da UNIMEP
mais uma vez foi homenageado, num reconhecimento público de que aquela
instituição só conseguira chegar até ali, formando 126 profissionais (dos quais
110 negros) pela contribuição prestada pela Universidade.
A
repercussão da formatura pôde ser sentida, não apenas pela presença do
presidente da República, sete ministros de Estado, um ex-presidente da
República, dois ex-ministros e o governador de São Paulo, mas pelo próprio
espaço dado ao evento pela imprensa, inclusive internacional. Analistas o
indicaram como um marco: era a turma com maior número de negros já graduados em
uma faculdade na América Latina. O Ministério da Educação do Brasil informou
tratar-se “da primeira e única instituição de educação superior do Brasil e de
toda a América Latina que tem 87% de negros autodeclarados, embora o acesso à
instituição seja universal”.[45]
Falando como patrono da turma, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da
Silva, indicou a solenidade como um “marco na conquista da autoestima de negros
e pobres”. O ministro da Educação, Fernando Haddad, formado na Universidade de
São Paulo na década de 1980, destacou que “privilegiados não são os negros
desta turma, e sim os brancos que tiveram a chance que minha geração não teve:
de estudar com negros”.[46]
A mesma
emoção se repetiu em 2009, quando a segunda turma de formandos, com 241 novos
profissionais, teve como patrono o ex-presidente da República Fernando Henrique
Cardoso. Sociólogo reconhecido internacionalmente antes de ser presidente da
República, Fernando Henrique destacou a necessidade de ações afirmativas: “o
grande berço das oportunidades é a escola”. Durante a cerimônia de formatura,
várias personalidades receberam o reconhecimento da UNIPALMARES, como o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o cônsul norte-americano em São Paulo , Thomas J.
White, e o ex-reitor da UNIMEP.
O mais
significativo, entretanto, a ser celebrado ao início de 2009 e divulgado pelo
reitor da UNIPALMARES, José Vicente, foi o alto índice de empregabilidade
conseguido pelos formandos: 60% deles havia se integrado ao mercado de
trabalho, logo após ter concluído o curso universitário. Vicente conseguiu
vencer também a barreira da discriminação ao buscar, desde o início da criação
da UNIPALMARES, parcerias com as maiores instituições financeiras do país,
tendo aberto a possibilidade de estágio aos estudantes negros durante seu
curso. Cerca de metade dos formandos foi aprovada na seleção. De estagiários,
tornaram-se funcionários efetivos após a conclusão do curso.[47]
Entre eles encontram-se ex-motoristas de taxi, filhos de ex-catadores de papel
nas ruas, ex-faxineiras, entre tantos negros humildes que jamais sonhariam em
estar entre funções executivas, caso não tivessem tido a oportunidade oferecida
pela UNIPALMARES. Na maioria dos casos é o primeiro negro na família que
consegue chegar ao ensino superior.
A
UNIPALMARES tem sido visitada por parlamentares norte-americanos e grupos
acadêmicos dos EUA que, nos últimos anos, vêm procurando conhecer a experiência
brasileira mais detalhadamente. Seu reitor, José Vicente, foi convidado a expor
o projeto nos mais diferentes fóruns de debates, inclusive órgãos como Supremo
Tribunal Federal, órgão máximo da Justiça brasileira. Em 2008 foi convidado e
acompanhou, como observador, a campanha de Barack Obama, assim como sua posse
como presidente dos Estados Unidos. A AFROBRAS, em sua premiação anual,
celebrou a vitória de Obama entregando a Laura Gold, representante do consulado
americano no Brasil, o troféu Raça Negra, em cerimônia realizada em novembro de
2008.
A síntese de José Vicente,
diante do novo momento já desenhado no Brasil na luta contra o racismo e a
integração dos afrodescendentes na sociedade é clara: “Depois da UNIPALMARES
não há como fazer menos. Governo e sociedade não poderão querer atender à
demanda dos afrodescendentes no Brasil apenas com farelos. Será da estatura
dessa instituição de ensino para cima”.[48]
Sua análise é ainda mais específica:
Mesmo depois de o Brasil ter aprovado várias
leis, de externamente ter conseguido grande visibilidade política, a
UNIPALMARES se constitui, na prática, no instrumento mais visível de integração
do negro na sociedade brasileira, porque até hoje não houve realmente mudanças
substantivas, estruturais que alterassem sua forma de tratamento. O racismo
persiste e a única instituição protagonista de uma política efetiva de inclusão
dos negros, foi posta de pé pelos próprios negros, que é a Faculdade Zumbi dos
Palmares.[49]
[1]
Previsões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
[2] LESSA,
Carlos. Jornal da Ciência. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência,
2002.
[3] Decreto
7967, artigo 2, de 18/09/1945.
[4] Decreto
1331, de 17/02/1854.
[5] Decreto
7031-A, de 07/09/1878.
[6] SANTOS,
Frei David Raimundo. As religiões são importantes para os afrodescendentes.
Disponível em http://latinoamericana.org/textos/portugues/DosSantos.htm.
Consulta: 16/08/2009.
[7] Pesquisa
desenvolvida pelo Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo
(USP).
[8]
Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, 2004.
[9] IBGE -
Instituto Ethos.
[10] Segundo
Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos ( DIEESE),
em conferência realizada em 27/06/2009, em Brasília, com consultor do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
[11] Artigo
5º, Inciso XLII da Constituição da República Federativa do Brasil.
[12] Artigo
140 do Código Penal Brasileiro.
[13]
Relatório da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e Intolerância. Organização das Nações Unidas, Durban, 2001.
[14] Países
da América Latina e Caribe preparam revisão da Conferência da ONU contra o
racismo. Disponível em www.brasilia.unesco.org.
Consulta: ago. 2009.
[15]
MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de
Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, nov.2003 (versão online).
[16] A data
refere-se ao assassinato de Zumbi, líder do maior grupo de escravos negros
fugidos que a história das Américas registrou. Foram cerca de 30 mil, que se
mantiveram durante mais de 100 anos no chamado Quilombo de Palmares, no Brasil.
[17] Cota
não altera número de negros na universidade. Folha de São Paulo, 26/12/2008.
[18]
JACCOUD, Luciana: O combate ao racismo e à desigualdade: desafio das políticas
públicas de promoção da igualdade racial; In: THEODORO, Mário (org.). As
políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição.
Brasília: IPEA, 2008.
[19]
MARTINS, Sérgio. In: MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no
Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, nov.2003
(versão online).
[20]
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil. Título II- Dos direitos e
Garantias Fundamentais, capítulo II- Dos Direitos Sociais, artigo 7º e Título
III – Da Organização do Estado, capítulo VII – Da Administração Pública, Art.
37.
[21]
THEODORO, Mario. A guisa de conclusão: o difícil debate da questão racial e das
políticas públicas de combate à desigualdade e à discriminação racial no
Brasil. In: THEODORO, Mário (org.). As políticas públicas e a desigualdade
racial no Brasil 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008. p.167.
[22] SPELLER, Paulo. A universidade Afro-Brasileira
e a ousadia na integração internacional. Afirmativa Plural, Ano 6, nº 31,
2009.p. 36-37.
[23] Este item do texto contou com a colaboração de Diná da Silva Branchini Coordenadora do Ministério de
Ações Afirmativas Afrodescendentes da 3ª Região Eclesiástica da Igreja
Metodista - São Paulo.
[24] IGREJA METODISTA. Vida e Missão. Piracicaba: Ed. UNIMEP,
1982. Aprovado pelo XIII Concílio Geral
da Igreja Metodista em julho de 1982.
[25] Idem.
[26] Entrevista com Antonio Olympio de Sant´Anna,
parcialmente reproduzida no jornal Expositor Cristão em maio de 2009.
Disponível em www.metodista.org.br/index.jsp?conteudo8479.
Consulta: 10/08/2009.
[27] SANTOS, Op.Cit., p.2.
[29] IGREJA METODISTA. Recomendações à Igreja Metodista.
Consulta Nacional sobre Racismo. São Paulo, SP, 29/04 a 01/05/2005.
[30] ROSA, Luiz Vergílio Batista – Igreja, Ações Afirmativas
e Políticas de cidadania - IN: Identidade -Boletim do Grupo de Negr@s da
EST/IECLB – v. 09 – janeiro-junho 2006; p.17.
[31] IGREJA
METODISTA. Plano Nacional: Ênfases e
Diretrizes & Mensagem da Igreja Metodista à Nação . 16º Concílio Geral. Biblioteca
Vida e Missão/Documentos, nº 4, 1997. p. 59.
[32] VERGILIO, Luiz. Sobre homens e mulheres negras
metodistas. Disponível em www.metodista.org.br. Consulta: 10/08/2009.
[34]
Entrevista concedida à jornalista Beatriz Elias em julho de 2007 em pesquisa realizada para o
livro Além das crises, esperança – Almir Maia: educação como compromisso
(Piracicaba: Editora Equilíbrio, 2008).
[35] Dados
do INEP-MEC. Provão revela barreira racial no ensino. Folha de São Paulo. São
Paulo,SP, 14/01/2001.
[36]
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. O acesso de negros às universidades
públicas. Revista FAAEBA, vol. 12, p.191-204. Salvador, BA, 2003.
[37]
CARVALHO, José Jorge. As propostas de cotas para negros e o racismo acadêmico
no Brasil. Sociedade e Cultura. V.4, nº 2, jul-dez 2001, p. 20-21.
[38] Idem,
p.15.
[39] Censo
Étnico-Racial da UNIMEP: para uma política de reconhecimento identitário,
desenvolvido pela Profa. Telma Regina de Paula Souza.
2002-2003.
[40] Entrevista concedida à jornalista Beatriz Elias em julho
de 2007.
[41] Entrevista concedida à jornalista Beatriz Elias em
junho de 2007 durante a preparação do livro “Além das Crises, esperança. Almir
Maia: educação como compromisso” (Piracicaba: Ed. Equilíbrio, 2009).
[42]
Racistas não: apaixonados pelo Brasil. Folha de São Paulo. São Paulo, SP,
13/03/2008.
[43]Primeira
Faculdade de inclusão do negro da América Latina já está em funcionamento. Disponível
em http://unipalmares.edu.br.
Consulta em set. 2007.
[44] A
manifestação da Consulesa diante da concessão do prêmio, em 2001, está
registrada no site www.embaixadaamericana.org.br.
[45]
Formatura na UNIPALMARES reaviva discussão sobre inclusão social e sistema de
cotas em
universidades. Disponível em http://oglobo.globo.com/educação/mat/2008/03/14.
Consulta: 14/02/2008.
[46] Lula:
formatura é conquista da auto-estima de negros. Disponível em www.terra.com.br. Consulta: 14/03/2008.
[47] Alunos
formados pela Faculdade Zumbi dos Palmares mudam empresas e sentem o peso da
diferença. Folha de São Paulo. São Paulo, SP, 10/05/2009.
[48]
Entrevista concedida à jornalista Beatriz Elias em julho de 2007.
[49]
Entrevista concedida à jornalista Beatriz Elias em agosto de 2009.
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